George Steiner escreve em A poesia do pensamento: “Sempre que a filosofia e a literatura se confrontam, os elementos da controvérsia [Platão contra os poetas] ressurgem” (p. 58). A frase refere-se ao Livro X da República, onde Platão expõe as causas do desterro dos poetas da polis ideal. Composta por 10 livros, a obra do filósofo oferece uma reflexão sobre a justiça que aborda a organização da cidade-estado ideal. Para Platão, a polis deve ser estruturada hierarquicamente em três classes: uma classe inferior de artesãos ou trabalhadores; uma intermediária de guerreiros e uma superior de líderes com um rei filósofo.

Na cidade ideal, não há lugar para os artistas: o pintor, o escultor e o poeta estão afastados três passos da verdade, segundo o filósofo da Academia. Na República, a mimese é considerada um entretenimento através do qual o artista reproduz a aparência – não a verdade profunda – das coisas e dos seres. O primeiro criador é Deus (Demiurgo), que criou a ideia de uma cama. O segundo criador é o artesão que criou uma cama sensível (fenoménica), e o terceiro é o artista que representa a cama sensível.

Devemos ter presente que, como assinala Werner Jaeger, do ponto de vista ‘moderno’, que vê a poesia como literatura, é difícil compreender esta reivindicação, que parece ser uma ordem tirânica, uma usurpação dos direitos dos outros. Mas à luz da conceção grega da poesia como principal representante de toda a paideia (educação), o debate emerge quando a Filosofia toma consciência de si mesma como paideia e reclama também para si a primazia da educação. A luta de Platão ocorre no contexto da educação. O filósofo quer que a filosofia eduque a Grécia para evitar os perigos sofistas.

Em outros diálogos platónicos, porém, como o Fedro ou o Banquete, o filósofo grego reconhece o valor estético da poesia e a descreve como uma forma de procura da imortalidade. As diferentes formas de considerar a mimese artística estão relacionadas com a dialética platónica, onde sujeito, objeto e ideia estabelecem relações não sempre claras. A arte é por um lado sombra, enquanto imitação, mas por outro, também está relacionada com o ideal e com o anseio de imortalidade.

É o seguinte: Como sabes, é muito amplo o conceito de Criação. Damos o nome de criação a tudo o que promove a passagem do não-ser para a existência, de forma que são criações todos os produtos das artes, vindo a ser criadores ou poetas os respetivos artesãos. […] Na presença de tal criatura, ocorrem-lhe, de pronto, as mais elevadas expressões sobre o valor da virtude, os deveres e as aspirações dos homens bons e, de imediato, procura doutriná-la. Convivendo com a beleza, segundo penso, e em contacto com ela, gera e dá nascimento às coisas de que, havia muito, sua alma estava prenhe; perto ou longe, não pensa em mais ninguém, e cria juntamente com ele o produto dessa união. A comunhão de semelhante par é muito mais íntima do que, a que se observa entre pais e filhos, porque estreitada com laços afetivos muito mais firmes, visto possuírem em comum filhos mais belos e mais imortais (Banquete, 205c, 209c).

No discurso de Diotima, no Banquete de Platão, situam-se no mesmo plano o sacrifício de dinheiro e de bens, a resolução dos grandes heróis da Antiguidade no esforço, no combate e na morte, para alcançarem o prêmio de uma glória duradoura, e a luta dos poetas e legisladores para deixarem à posteridade criações imortais do seu espírito. E ambas as coisas se explicam pelo poderoso impulso do homem mortal em busca da própria imortalidade. Constituem o fundamento metafísico dos paradoxos da ambição humana e da ânsia de honra! (Paideia, Jaeger, p. 36).

A poesia, assim, nos seus inícios, era uma atividade de criação relativa à música e aos metros. A poesia continua sendo uma passagem do não-ser para a existência. Diotima, nesse belo tratado sobre o amor, fala que ele é o anseio de imortalidade.  É perante a procriação, do corpo e da alma, que os mortais participam da eternidade. Neste sentido, cita três tipos de imortalidade associadas à poiesis: mediante a procriação sexual; a imortalidade do mérito e da fama gloriosa e, finalmente, perante o conhecimento e a virtude.

A visão da beleza de um corpo singular desperta a alma, mas o desejo suscitado na alma, em vez de permanecer nos corpos, avança e eleva-se até à própria beleza. O amante que parte do amor pelo corpo e se eleva, aprecia a beleza das almas e pode chegar a contemplar a beleza em si mesma. O sujeito está enamorado do princípio gerador de beleza, daquilo que faz com que os objetos sejam belos. Enquanto os amores heterossexuais permitem a geração física, o amor pelas ideias aponta para outro tipo de geração, gerar discursos, pensamentos, filhos do espírito.

A referência à imortalidade é o ponto que queria comentar. Notem-se as semelhanças que há entre a divisão de atividades por parte de Aristóteles (Práxis, Poiesis e Teoria) e a imortalidade em Platão. A consciência da nossa finitude é sublimada pela escrita no anseio de imortalidade que se dá na geração e procriação da beleza. A poesia sempre supõe uma pergunta pelo sentido que transcende a imanência do próprio poema. É uma pergunta pelo sentido no litoral que separa ao homem dos animais mediante a linguagem. Lemos no Timeu, de Platão:

Nenhum dos discursos que temos vindo a fazer sobre o universo poderia de algum modo ser proferido sem termos visto os astros, o Sol e o céu. Foi o facto de vermos o dia e a noite, os meses, o circuito dos anos, os equinócios e os solstícios que deu origem aos números que nos proporcionam a noção de tempo e a investigação sobre a natureza do universo. A partir deles foi-nos aberto o caminho da filosofia, um bem maior do que qualquer outro que veio ou possa vir alguma vez para a espécie mortal, oferecido pelos deuses (Timeu, 47 a-b).

A linguagem é causa, problema e solução à excisão que nos define como seres humanos. Foi o fato de vermos o dia e a noite fala Platão, a contemplação, das estrelas, aquilo que provocou a pergunta pelo tempo e a natureza do universo. “O sentido, acho, é a entidade mais misteriosa do universo”, dirá Leminski. As afirmações do filósofo da República e do poeta brasileiro têm sua base antropológica. A poesia, a poiesis, tem uma dimensão lúdica, mas vai além. Matar o tempo é tomar consciência da nossa finitude e sublimar a pulsão de morte.

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